terça-feira, 15 de abril de 2014

A PROPOSIÇÃO

A proposição “MEMÓRIA DE BOLSO – contra o sono do sangue” consiste em uma intervenção pública a ser realizada em Belém (PA) no dia 17 de abril deste ano, às 16h, na Praça da República.
 A ação será registrada e postada neste blog, criado especialmente para a proposição, gerando um canal e uma rede de discussões e debates acerca da proposição e seu objeto central.
Nesta intervenção, serão distribuídos aproximadamente 1000 calendários de bolso, no formato 6,5X9,5 cm, como aqueles oferecidos, tradicionalmente, como brinde e/ou souvenir pelas casas comerciais.
Como é próprio desses calendários, as imagens que compõem uma de suas faces, são de uma iconografia típica desse tipo de brinde, ou seja, imagens que se tornaram referências iconográficas no imaginário popular em parte pela própria circulação que o suporte de calendário de bolso proporcionou e de certa maneira ainda proporciona.
As imagens utilizadas na confecção dos calendários da proposição são o “Sagrado Coração de Jesus”, Uma típica paisagem bucólica com referencias a um ideário romântico e uma pintura de Jean-François Millet que embora não pertença a uma iconografia kitsch, acreditamos que mantém referências diretas com o conceito da proposta pela força do realismo da imagem que dialoga diretamente com a ideia de campo/sonho que a proposta pretende.

O JOGO
A proposição “MEMÓRIA DE BOLSO – contra o sono do sangue” alude ao massacre dos 19 trabalhadores sem terras no ano de 1996 que neste ano de 2014 completa 18 anos, uma espécie de “maioridade” da barbárie e de sua memória.

Assim, eis o cerne da proposição “Memória de bolso - contra o sono do sangue”: o jogo com a memória que o objeto, calendário de bolso, instiga. O estranhamento que se instala ao se perceber a repetição, a insistência das datas. Lembrando que todos os dias são aquele dia, ou que todos os dias e todos os meses estão ali pulsando, resistindo por entre os dias. A memória martelando seu grito-sussurro contra a barbárie que não pode ser esquecida. Contra o cotidiano e suas simulações que quer anestesiar-nos ante a realidade que se evidencia na vida atual que “assassina” e anula o humano.
A proposição desdobra-se num jogo em que a memória se insinua por entre os versos de T. S. Eliot. Versos que se relacionam e se redimensionam nesse jogo em que a poesia também atua para criar o estranhamento necessário para o desenrolar da ação.
As imagens-clichês, a princípio, mantêm a normalidade: um simples calendário, um brinde de alguma loja ou outro empreendimento, mas em seu verso a data repetida e insistente as coloca em um novo contexto, como símbolo kitsch do sonho comum: a vida melhor que se massificou no jogo, no simulacro que as imagens engendram na sociedade contemporânea. O imaginário e o ideal que elas fabricam. Ícones da fé, esperança e sonho. Enfim, o espaço do sonho para sonhar.
Com isso instala-se um estranhamento, um sutil incômodo quando o público se depara com tais referências onde, inicialmente, busca-se justamente uma forma de orientar-se no mundo por meio da ordem diária dos dias e meses do ano que o objeto deveria oferecer, mas este desorienta. O que é isto? Houve um erro de impressão dos calendários? Que data é esta? Por que esta data especificamente? Estas são, talvez, indagações possíveis que farão a proposição se desdobrar para além do instante em que se realizou. Este incômodo, o que ele pode? Instigará o incomodado? O fará buscar respostas com as “pistas” e “vestígios” que a data e o endereço virtual no rodapé lhe oferecem? Outras questões, outras incertezas que são o motor da proposição. Uma máquina movida pelo possível, pela inquietação do outro que a pode fazer funcionar plenamente para além da ação inicial em que estava.
A proposição se estende, se espraia por uma rede, por um desdobramento sociovirtual. A memória procura outros territórios para resistir, permanecer como passado que se atualiza no presente. Buscando canais para que, pelo menos por um determinado momento, nos ocupemos dela. Que seja ela, e o que ela remonta, o centro de uma discussão contra o anestesiamento e o esquecimento que a realidade cotidiana das ruas, das praças, das cidades lhe impõe.
Neste território, o virtual, a proposição dissolve a identidade como compreensão de um enraizamento de referência familiar, particular como diz Katia Canton em sua obra “Espaço e lugar”: Lugar se refere a uma noção específica de espaço, o do particular, familiar, responsável pela construção de nossas raízes e nossas referências no mundo. Assim a identidade se desaloja do campo particular/afetivo e se redimensiona a partir do compartilhamento de questões e problemáticas afins. Um território em que o pertencimento se constrói pela identificação do conteúdo.
Com isso, uma micropolítica é agora ação política de todos os que nela se enredam nessa rede. Compartilha-se a inquietação e as angústias. A memória é retomada como fato em outro contexto, mas com as reflexões e desdobramentos da substância que a tornou memória que quer e deve ser rememorada.


Marcílio Costa e Ednaldo Britto